Domingo, 23 de Novembro de 2008

NÃO SE GOVERNAM NEM SE DEIXAM GOVERNAR

«Eu acho (mas é apenas uma suposição pessoal...), que o que fez Manuela Ferreira Leite entrar em ritmo de asneira livre foi a imagem das criancinhas dos liceus a atirar tomates e ovos à ministra e aos secretários de Estado da Educação, entre risos, gritos, histeria e imbecilidades debitadas para os generosos microfones das televisões. E eu percebo-a: no meu tempo de estudante, nós corríamos à frente da polícia de choque, incendiávamos os carros dos “gorilas” da Faculdade, boicotávamos as aulas dos professores do regime, mas tínhamos uma causa concreta, a mais simples de todas: a liberdade. E a liberdade das coisas mais óbvias: poder dizer o que pensávamos, ver os filmes que queríamos, ler os livros e revistas que entendêssemos, sair para o estrangeiro livremente, não ter que desperdiçar dois anos de vida, ou até a própria vida, a defender a pátria em expedições coloniais punitivas com trinta anos de atraso histórico. Muito embora já então não ignorássemos por completo a máxima de que a única vantagem da condição de jovem-estudante é que se trata de um estado de estupidez inevitável que em breve passará, a verdade é que tínhamos razões para ter causas e tínhamos razão e tínhamos causas. Hoje, estas entusiastas criancinhas, que nada têm para arriscar, batem-se por quê: por mais um computador em casa, um telemóvel de última geração, uma nova discoteca para enfiarem «shots» até caírem de borco? É certo que tinham razão relativamente ao regime de faltas, cuja interpretação em algumas escolas conduzia ao absurdo de não distinguir faltas por doença de faltas justificadas - um absurdo, entretanto, corrigido e clarificado pelo Ministério. De resto, que sabem eles do assunto para declararem que querem a demissão da ministra porque ela é “muito autoritária”? Apetece mandá-los todos para trabalhos forçados, a colherem tomate dobrados até ao chão ou a apanharem ovos e limparem capoeiras - para saberem o que vale um ovo e o que vale um tomate.

Eu compreendo Manuela Ferreira Leite: ela já não sabe o que há-de pensar, o que há-de propor para governar este país. Em Março, avisa que abandonar a avaliação dos professores seria uma traição cometida por Sócrates contra o seu eleitorado; em Novembro propõe solenemente que se abandone a avaliação. Na semana passada, declara que não se podem fazer reformas contra as corporações respectivas; esta semana desabafa que, para conseguir fazer reformas, seria preciso suspender a democracia seis meses e fazer tudo por decreto, antes de retomar a normalidade democrática. Francamente, não me passa pela cabeça que ela pense mesmo aquilo que disse: o problema é que ela dá mostras de não saber o que pensar. Perdeu o norte, já não reconhece o chão que pisa. Chegou à mesma conclusão que eu cheguei há uns anos e os romanos já há dois mil anos: que nós não somos governáveis. Não nos governamos, nem nos deixamos governar.

O problema de Manuela Ferreira Leite é que ela não tem um pensamento político sólido nem estruturado para o país e, na situação de emergência em que vivemos, não tem tempo para o formar. Achou que lhe bastava uma dose normal de senso comum e a capacidade de ir gerindo os problemas à medida que eles fossem aparecendo. Primeiro, ficou calada, a ver se percebia o que se passava: depois, como toda a gente lhe gritava que falasse, ela resolveu começar a falar sem ter tido tempo para perceber. Começou a falar como quem pensa em voz alta e desataram a sair as asneiras, como aquela de não poderem ser os jornalistas a escolher a informação dada ao público (quem deveria ser, então: o Zeca Mendonça, do PSD, o ministro Santos Silva, do PS, ou o Cunha Vaz, o especialista em ensinar aos políticos o que eles devem dizer?).

Por exemplo: a guerra dos professores, de que o país está farto, deveria merecer-lhe uma linha de rumo definida, e não oscilante, conforme a rua ou as sondagens o determinam. Anteontem, o Governo voltou a recuar na avaliação, dando finalmente sinais de maleabilidade. Mas é duvidoso que os professores aceitem, mesmo que a alternativa seja a de ficarem aos olhos da opinião pública como o único sector do funcionalismo do Estado que não aceita ser avaliado profissionalmente - nem sequer para permitir que os melhores sejam premiados. Tal como as coisas se apresentam, é quase certo que a Fenprof e Mário Nogueira não aceitarão nada que não seja a continuação da “luta” até à derrota final da ministra e do Governo. Como bom comunista, Mário Nogueira não terá esquecido ainda os ensinamentos de Lenine de que “a revolução é impossível sem uma crise nacional”, e esta passa por “uma crise governamental que atraia para a luta política até as massas mais retardatárias” (‘A doença infantil do comunismo’, 1920). A agenda da Fenprof passa por uma crise governamental, mesmo que não se alcance o que tem o país a ganhar com isso, excepto o caos. Há várias alternativas possíveis neste quadro, mas seguramente que a suspensão da democracia por seis meses não é uma delas. Haveria que ter pensado a sério no assunto antes.

Os problemas urgentes e graves são outros. São as fábricas de automóveis a encerrarem durante semanas e a despedirem por quebra de vendas. É o desemprego que vai disparar e o défice público, tão penosamente diminuído nos últimos anos, que vai ter de crescer para fazer face ao problema. São as exportações em queda a pique, porque os mercados compradores estão todos em recessão. São as empresas descapitalizadas e sem capacidade de endividamento para poderem voltar a investir. É, segundo muitos, uma crise económica sem precedentes depois de 1929, que nenhum dos que estão vivos teve de enfrentar até hoje. Conseguir que Portugal sobreviva neste oceano de tempestades que nos espera ao virar do cabo vai ser tarefa imensa e de resultado mais do que incerto. Não sei se os portugueses perceberão desta vez que é inútil esperar que a salvação venha toda do Governo. Sei que há ainda quem acredite que o Governo (este ou qualquer outro), se quisesse, fazia uma lei e acabava com a crise: podia-se subir salários, pensões, subsídios, financiar as empresas e garantir a banca, fazer obra pública e multiplicar as ajudas à agricultura. Esses nunca perceberão que não há políticas que possam salvar uma economia que, em grande parte e historicamente, se habituou a ser parasitária. Vive do Estado, das ajudas do Estado, dos negócios do Estado, da assistência do Estado. Faz parte da filosofia do “viver habitualmente”, de que falava Salazar: nunca seremos um país desenvolvido nem de gente independente, mas viveremos sempre remediados e aconchegados na protecção do Estado. Seja isso o que for e venha de onde vier o dinheiro: antes das colónias, depois da Europa, hoje cada vez mais dos pagadores de impostos sérios, que são uma minoria. 2009 vai ser um ano terrível, mas de uma coisa estou certo: apesar de irem falir muitos que o não mereciam e que vão ser apanhados na voragem, os que sobreviverem - se o jogo for limpo - é porque não ficaram encostados à espera que os viessem salvar.

Vem aí sangue, suor e lágrimas e é preciso saber mobilizar as pessoas para isso. É nisso que Manuela Ferreira Leite se deveria concentrar: em distinguir o essencial do acessório. Quem chefia a oposição lidera uma fatia importante dos portugueses. E quem lidera tem de saber muito bem e tornar claro qual é o caminho que propõe. Não pode dar uma imagem de cata-vento, ultrapassado pela dimensão do desafio.»

 

Miguel Sousa Tavares in expresso via http://jumento.blogspot.com/

publicado por peixebanana às 20:59
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É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

 

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Alucinações

 
Um polícia reformado imagina que uma criança inglesa morreu num trágico acidente e que o corpo foi congelado ou conservado no frio pelos pais e amigos.

Um político socialista imaginou que era possível combater a corrupção neste sítio cada vez mais mal frequentado, apresentou um pacote de medidas e ficou muito desiludido quando o seu partido o atirou para o lixo e aprovou um conjunto de diplomas que vai deixar tudo como antes, o quartel-general em Abrantes. O mesmo político imagina, agora, que a corrupção está mais elevada do que nunca e fica triste porque ninguém lhe liga nenhuma.

A líder do maior partido da Oposição imagina que é possível chegar ao poder sem andar por aí em festas folclóricas, em espectáculos medíocres e chega ao ponto de dizer que vai tentar falar verdade sobre os problemas do sítio e que não se pronuncia sobre assuntos que não conhece.

Um ministro deste Governo socialista imagina-se como director comercial de uma multinacional e salta de contente sempre que assina um contrato com uma empresa qualquer. O mesmo governante imagina um dia que a crise económica, financeira e social já passou e no outro imagina que o que aí vem vai ser bem pior.

Um primeiro-ministro que os indígenas elegeram em 2005 com maioria absoluta imagina que vive num sítio maravilhoso, com uma economia pujante, com um nível de vida extraordinário, com cidadãos altamente qualificados e até imagina que Angola tem um governo fabuloso, digno dos maiores elogios, que a Líbia é dirigida por um ser normal, democrático, que até escreveu em tempos um livro que só por acaso não ganhou o Nobel da Literatura e que a Venezuela tem um presidente civilizado, com os alqueires todos no sítio e que merece ser recebido várias vezes em poucos meses com gestos de grande carinho e amizade.

Um Presidente da República imagina que os seus silêncios são mais importantes do que as suas palavras e imagina que quando discursa alguém o ouve verdadeiramente com atenção. Imagina que quando fala na necessidade de se combater a corrupção ou atacar a sério os problemas da Justiça e da Educação alguém o leva verdadeiramente a sério e vai a correr preparar mais uns diplomas para indígena ver.

A alucinação, como se vê, veio para ficar. Está a tornar-se numa pandemia. Em vez de dinheiros da Europa, o sítio precisa urgentemente de uma enorme equipa de psiquiatras que o cure da doença enquanto há tempo e esperança de cura.

António Ribeiro Ferreira
[in Correio da Manhã, 28.07.2008]

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